Literatura - O Cabeleira

O CABELEIRA: A CONSTRUÇÃO DA ÍNDOLE DO PROTAGONISTA PELO DETERMINISMO DO MEIO


Fernando Soares Ferreira de Santana
           

O Cabeleira foi lançado em 1876 por Franklin Távora (1842-1888), escritor cearense, cadeira nº 14 da Academia Brasileira de Letras e defensor da literatura do Norte (que era desvalorizada em relação a do Sul) sendo um dos maiores nomes da literatura brasileira. O escritor elabora o livro com o intuito de fazer um registro histórico da província de Pernambuco no século XVIII que é inspirada em um personagem real somada a ficção. O Cabeleira é escrito na transição do Romantismo para o Naturalismo, portanto possui marcas dos dois períodos, a obra também é de suma importância para a literatura pois ela inicia a tentativa de tornar o regionalismo um movimento literário no Brasil. Este é marcado pela necessidade de dar ênfase a determinadas regiões brasileiras, mais especificamente do interior, e mostrar a realidade do lugar de diferentes formas. Podemos, portanto, classifica a obra como sendo um Romance Romântico Regionalista Histórico.
O presente trabalho pretende fazer relação entre a bondade da mãe e truculência do pai do protagonista, estabelecendo foco no determinismo contido no conto, traço este herdado do naturalismo. Pretendemos também analisar as consequências desse determinismo na vida do personagem.


       1.      BREVE RESUMO

Neste romance, Távora tematiza o cangaço, tendo como personagem José Gomes, intitulado como “O Cabeleira” devido ao seu cabelo cumprido. O personagem é retratado como um homicida viperino, que por influência de seu pai, Joaquim Gomes, se torna um delinquente, um homem do mato, que roubava e matava a sangue frio. Logo na infância já aprendia a cometer crimes, ensinado pelo pai a matar alguns animais somente para, mais tarde, aprender a aniquilar pessoas. Joana, sua mãe, era adversa a essas atitudes. Era uma mulher religiosa e pura, que amava seu filho.
Alguns acontecimentos fazem com que Joaquim fuja de casa, levando consigo seu filho. A vida bruta, que teve sendo criado pelo pai no mato, foi moldando José para se tornar um assassino cada vez mais frio e truculento. Os crimes cometidos por Cabeleira, seu pai e Teodósio, cumplice dos malfeitores, eram dos mais variados, indo de assassinatos de crianças a matanças em comunidades inteiras. Em meio a sua vida de bandido, Cabeleira acaba ferindo a mãe de Luisinha (ou Luísa), amiga de infância e prometida do protagonista, que assim que descobre que aquela era a pessoa amável a quem tinha prometido ser marido e não mais fazer o mal, se arrepende grandemente de seu feito e pretende cumprir a promessa que fez a ela em sua meninice. Ele pretendia não mais matar e ser um homem bom para estar ao lado de sua amada e deixar a vida da qual estava começando a se cansar.
Infortunadamente, tentando fugir dos militares do governo, que estavam atrás de Cabeleira e já haviam capturado seu pai e os capangas, Luísa acaba morrendo devido a queimaduras que carregava de um grave acontecimento, ao qual teve que escapar de um incêndio com o corpo inanimado de sua mãe. Cabeleira, que já havia começado a mudar sua índole, fica em um círculo fechado: sendo cercado pelos militares e sem motivos para viver ele é preso e condenado. Por mais que sua mãe apelasse pela sua vida, afirmando que ele havia mudado sua persona e que seria útil servindo na prisão, seus esforços são vãos e José Gomes acaba sendo enforcado como pena de morte. O narrador, ao final, traz diversas reflexões sobre este acontecimento, que reverberaram em toda a cidade, mas, mesmo assim, este acontecimento não interrompe a onda de crimes que aconteciam nas redondezas.


       2.      O CONFLITO ENTRE O BOM E O MAU CARATER

Ao ler a obra, observamos que o comportamento de José sempre era influenciado pela truculência de Joaquim. Como seu pai, ele era um assassino temido, que era mais violento quando seu pai o instigava. Um exemplo deste fato é quando Cabeleira, que achava desnecessária a execução de uma pessoa sem justificativa, é incentivado por seu pai:

— Para que matar se eles fogem de nós?
— Matar sempre, Zé Gomes — retorquiu o mameluco com as narinas dilatadas pelo odor do sangue fresco e quente que do rosto lhe descia aos lábios e destes penetrava na boca cerval. — Não temos aqui um só amigo. Todos nos querem mal. É preciso fazer a obra bem feita.
[...]
— Estás com medo, Zé Gomes, deste poviléu? Parece-me ver-te fraquear. Por minha bênção e maldição te ordeno que me ajudes a fazer o bonito enquanto é tempo. Não sejas mole, Zé Gomes; sê valentão como é teu pai.
 Tendo ouvido estas palavras, o Cabeleira, em cuja vontade exercitava Joaquim irresistível poder, fez-se fúria descomunal e, atirando-se no meio do concurso de gente, foi acutilando a quem encontrou com diabólico desabrimento. (TÁVORA, 2005, p. 32).

Para Joaquim, a criminalidade era algo a se orgulhar, como um mérito que afirma sua coragem e masculinidade. Em uma discussão, Joaquim dizia a Joana como quem diz que iria ensinar grandes virtudes ao filho:

— Hei de ensiná-lo a ser valente. Há de aprender comigo a jogar a faca, a não desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem espírito que não tens ânimo para matar um bacorinho. Não sabes que o assassino é respeitado e temido? (TÁVORA, 2005, p. 56-57).

Por mais que a Joana tentasse influenciar o filho positivamente, ela era interrompida por Joaquim. Nota-se então a influência benévola da mãe se chocando contra a influência maligna do pai, que em meio a tudo prevalece esta perante aquela. Nas trovas da época, o povo cantava:

Minha mãe me deu
Contas pra rezar.
Meu pai deu-me faca
Para eu matar.
           
Esta e outras trovas eram cantadas pelas comunidades nordestinas, Cabeleira pode ser, portanto, aqui comparado a uma figura mitológica, tendo até cantigas utilizadas pelos povos para colocar medo e, ao mesmo tempo, ensinar lições e valores às crianças.
Luísa é a personagem que retoma a memória de Cabeleira ao lado materno, ao lado bondoso. Após seu encontro com aquela que lhe inspirava a querer mudar, o protagonista questionava seu bom caráter, pensando: “– Que juízo ficaria fazendo de mim Luisinha? - perguntou de si para si o Cabeleira, insensivelmente arrastado por esta ordem de idéias. – Ah! que pode ela pensar de mim senão que sou um assassino?!” (TÁVORA, 2005, p. 72). Luísa também é aquela que direciona Cabeleira, pois em diversas vezes ela intervém em seus atos cruéis. Um deles foi quando cabeleira encontra uma plantação com frutos vistosos, e tendo um garoto, que estava afastando maracanãs do milharal, dormido no local, ouvira José furtar os frutos e o agrediu: “O Cabeleira em represália atirou-lhe um golpe com o intuito de cortá-lo de meio a meio, intuito que foi burlado por Luísa que lhe havia pegado do braço a tempo de evitar a desgraça iminente. ” (TÁVORA, 2005, p. 129).
A história nos dá a entender que esse amor poderia sim mudar Cabeleira. Por mais que, após a morte de Luísa, ele perdera aquela que era seu mais precioso bem, ele tentou instintivamente continuar sobrevivendo, inclusive quase matando alguém novamente, mas em uma alucinação ele desiste do que pretendia fazer:

Quando estava para fazer a terrível intimação, sentiu o Cabeleira faltar-lhe força para suster o cabresto, tremeram-lhe as pernas, vacilaram-lhe os pés. Seus olhos tinham dado com a imagem de Luísa, de joelhos na beira do caminho com as mãos postas, os olhos suplicantes, tristes, e chorosos, voltados para ele. Pareceu-lhe até ouvir as seguintes palavras:
— Não o mates, Cabeleira. (p. 151)

Vemos, portanto, ao longo da obra, esse embate entre as dicotomias bem e mal. Cabeleira faz a transição de um para o outro, passando a sua personalidade por acontecimentos que o levam a transfiguração do caráter maligno para o benigno.


       3.      O DETERMINISMO: UMA RELAÇAO ENTRE ESSENCIA E EXISTÊNCIA

Entre diversas questões abordadas durante a trama, o narrador nos atenta para o fato de que nada adiantou condenar a morte o Cabeleira, porque após ele outros bandidos surgiram, espalhando desgraça pela região: “A execução do Cabeleira e seus co-réus não atalhou às desordens e delitos, a que se refere a provisão; não trouxe terror nem emenda aos malfeitores. ” (TÁVORA, 2005, p. 168). Com isso o determinismo é enfatizado por Távora, que aponta em muitos momentos a influência que a criação e o meio estabeleceu sobre José Gomes, pois ele nasce como um ser bom, mas é corrompido por seu pai ao longo da vida.
No determinismo do meio o homem é visto como um produto do âmbito que o cerca, conceito este vindo do Marxismo:

Uma leitura existencialista do marxismo, segundo Jean-Paul Sartre, a essência do homem é não ter essência, a essência do homem é algo que ele próprio constrói, ou seja, a História. ‘A existência precede a essência’; nenhum ser humano nasce pronto, mas o homem é, em sua essência, produto do meio em que vive, construído a partir de suas relações sociais. (MORAES, 2012)

A natureza do protagonista não foi uma marca de sua essência, algo conduzido desde o nascimento, mas sim construído ao longo de sua existência. Ainda pequeno, enquanto o pai o ensinava a matar passarinhos, José dizia: “– Tenho pena, papai, e não farei isso aos pobrezinhos [...] (TÁVORA, 2005, p. 54). Sendo assim, a criação dura que cabeleira teve com o pai vivendo no mato, vendo o assassinato como uma virtude e presenciando o mesmo em toda sua crueldade, Cabeleira se tornando o “sujeito de más entranhas”, ao qual o narrador aponta na obra, fazendo com que o leitor entenda o personagem:

[...] José, o filho sem sorte que estava fadado a legar à posteridade um eloqüente exemplo para provar que sem educação e sem moralidade é impossível a família; e que a sociedade tem o dever, primeiro que o direito, de obrigar o pai a proporcionar à prole, ou de proporcioná-lo ela quando ele o não possa, o ensino que forma os costumes domésticos nos quais os costumes públicos se firmam e pelos quais se modelam. (TÁVORA, 2005, p. 53-54)

Em alguns momentos, o protagonista tem conflitos internos, tendo consciência de que fora criado por um pai ruim e por isso cometia perversos crimes, dizendo ele ao próprio pai em um momento: “– Não tenho pai; só tenho mãe que me ensinou o caminho do bem; pai nunca tive nem tenho. Não é meu pai aquele que só me ensinou a roubar e a matar. ” (TÁVORA, 2005, p. 100). Não suportando mais aquela vida e tendo Luisinha ao seu lado, pretendia ele se tornar outra pessoa e cumprir a promessa que havia feito a ela na infância de que não mais mataria.
Ao final, o narrador questiona o leitor, afirmando “De que serviu pois a provisão régia? Em que consistiu o proveito da execução dos três infelizes no regime colonial; e dos que os precederam, ou se lhes seguiram neste e no regime do Império? ” (TÁVORA, 2005, p. 169). Logo a seguir é feita uma reflexão:

Ah! meu amigo, a pena de morte; que as idades e as luzes têm demonstrado não ser mais que um crime jurídico, de feito não corrige nem moraliza. O que ela faz é enegrecer os códigos que em suas páginas a estampam, por mais liberais e sábios que sejam como é o nosso; é abater o poder que a aplica; é escandalizar, consternar e envilecer as populações em cujo seio se efetua. (TÁVORA, 2005, p. 169).
           
A morte de José Gomes não lhe trouxe medo, mas dentre as reflexões de tudo que havia feito ele estava disposto a mudar. No final, restou apenas sua mãe aos prantos, que nada podia fazer perante o corpo de seu filho, agora decapitado. Távora faz uma ponderação sobre as desgraças que vem aqueles que são pobres e, aqueles que são ricos, tem nessa condição “um dos primeiros bens da vida” (2005, p. 170). Ele conclui apreciando o trabalho honesto e para que aqueles que são necessitados vivam deste.

            Franklin Távora faz o registro da história de um herói do mal, que por influência paterna acaba se tornando um terrível criminoso. Apesar de ser um homem, que por muitas vezes, praticava a maldade, no fundo de seu coração havia uma esperança, havia a bondade que carregava desde a tenra idade, que foi resgatada por Luísa, mostrando assim uma das mais belas marcas do Romantismo - o amor supera até a essência humana.
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REFERÊNCIAS

COLA DA WEB - TRABALHOS ESCOLARES. O Cabeleira – Franklin Távora. Disponível em: <https://www.coladaweb.com/resumos/o-cabeleira-franklin-tavora>. Acesso em 08 de jan. 2018.

FRAZÃO, Dilva. Franklin Távora, 2017. Disponível em: <https://www.ebiografia.com/franklin_tavora/>. Acesso em 09 de jan. 2018.

LITERATURA BRASILEIRA – EDUCATERRA. Realismo/Naturalismo: Características do Naturalismo. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/literatura/realnaturalismo/realnaturalismo_12.htm>. Acesso em 09 de jan. 2018.

MORAES, Joao B. Lordello. Homem, produto do meio, produto dos homens, 2012. Disponível em: <http://jblm.com.br/homem-produto-do-meio-produto-dos-homens/>. Acesso em 10 de jan. 2018.

OLIVEIRI, Antônio Carlos. Regionalismo: Literatura das peculiaridades do Brasil, 2006. Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/disciplinas/portugues/regionalismo-literatura-das-peculiaridades-do-brasil.htm>. Acesso em 08 de jan. 2018.

PASSEI WEB. O Cabeleira, de Franklin Távora. Disponível em: <http://www.passeiweb.com/estudos/livros/o_cabeleira>. Acesso em 09 de jan. 2018.

SANTANA, Ana Lucia. Escritores de Romances Históricos. Disponível em: <https://www.infoescola.com/literatura/escritores-de-romances-historicos/>. Acesso em 09 de jan. 2018.

TÁVORA, Franklin. O Cabeleira. São Paulo: Martin Claret, 2005. 184 p.

TODA MATÉRIA. Romance Histórico, 2017. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/romance-historico/>. Acesso em 08 de jan. 2018.



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